Artigo de Córnea – Edição 171
Autora do Artigo: Marcella Salomão
Ceratocone e outras doenças ectásicas da córnea vêm sendo estudados há mais de 150 anos.1,2 Sua incidência é classicamente descrita como de um caso a cada 2.000 habitantes,1,2 embora alguns estudos já tenham descrito uma incidência ainda maior. Tradicionalmente, a doença se manifesta em torno da segunda década de vida, com baixa acuidade visual relacionada a astigmatismo irregular, secundário a protrusão corneana por instabilidade biomecânica.3,4 Alergias oculares, atopia e o hábito de coçar os olhos são considerados fatores predisponentes. A associação com síndrome de Down, retinose pigmentar, prolapso de válvula mitral, síndrome de Marfan, entre outras, também já é conhecida.
O considerável progresso sofrido no campo da cirurgia refrativa nos últimos anos contribuiu significativamente para o aprimoramento do diagnóstico e do tratamento de tais desordens. Tradicionalmente, o foco no manejo de pacientes com ceratocone sempre foi a reabilitação visual, através de óculos, lentes de contato especiais e implante de segmentos de anel intra estromal, assim como a ceratoplastia nos casos mais avançados.5-10 Todavia, no início dos anos dois mil, o manejo de pacientes com ceratocone auferiu mais uma alternativa, com a introdução do crosslinking de colágeno da córnea (CXL) por Wollensak e colaboradores.11 O procedimento consiste em uma reação fotoquímica entre a riboflavina e luz ultravioleta A (UVA) no estroma corneano, resultando em um aumento das ligações covalentes entre as fibras de colágeno, o que, comprovadamente, desacelera a progressão do ceratocone.11,12 Após bons resultados em adultos, o CXL vem sendo recentemente empregado no tratamento de ceratocone em crianças.13,14
A literatura sustenta que o ceratocone tende a evoluir mais rapidamente e também a ser mais agressivo em crianças do que em adultos,15-17 o que acaba tendo um impacto sócio-econômico e educacional inquestionável. Adicionalmente, o prognóstico e a resistência de transplantes corneanos em crianças tende a ser pior quando comparado com adultos.18 Assim sendo, a proposta de um tratamento em estágios menos avançados, que possa eventualmente desacelerar a progressão da doença, antes da indicação de um transplante, pode ser favorável.19 Alguns autores têm investigado a aplicação de CXL em crianças e seus efeitos.
Em um estudo prospectivo, Arora e colaboradores13 realizaram CXL em 15 olhos com ceratocone moderado de 15 crianças com idade entre 10 e 15 anos, cujo olho contra-lateral apresentava ceratocone avançado. Ao final de um ano, os autores observaram não somente diminuição e estabilidade no valor do K máximo (1.01 ± 2.40 dioptrias), mas também melhora na acuidade visual sem correção [de 1.00 ± 0.30 (20/200) para 0.72 ± 0.29 (20/100)] e com correção [0.56 ± 0.21 (20/70) para 0.30 ± 0.15 (20/40)].
Já em um estudo com follow up mais longo, Vinciguerra e co-autores20 investigaram prospectivamente 40 olhos de 40 pacientes pediátricos submetidos a CXL. Ao término de dois anos, o que se observou foi uma redução significativa na ceratometria de ambos os meridianos, de 46.32 D para 45.30 D no mais plano, e 51.48 D para 50.21 D no mais curvo; além de melhora significativa da acuidade visual sem e com correção, o que os autores atribuíram à diminuição das aberrações de alta-ordem.
Caporossi e colegas14 também encontraram resultados semelhantes em um estudo prospectivo não randomizado fase 2 de um Trial envolvendo 152 pacientes com idade entre 10 e 18 anos. Esses jovens apresentaram, ao final de 36 meses de acompanhamento, melhora na acuidade visual corrigida e não corrigida, assim como melhora dos padrões topográficos, índices de assimetria e coma.
Chatzis e Hafezi21 publicaram um estudo retrospectivo incluindo 59 olhos de 42 pacientes com idade entre 9 e 19 anos, com follow up de três anos. A taxa de progressão da doença nesta amostra era de 88%. Embora os resultados de diminuição das medidas ceratométricas e de melhora na acuidade visual tenham sido semelhantes aos descritos nos estudos mencionados anteriormente, neste estudo, os autores observaram que a redução nos valores de K máximo encontradas ao final de 24 meses perdiam significância aos 36 meses. Por conta disso, esses autores sugerem a indicação de CXL em crianças assim que o diagnóstico for feito, antes mesmo que haja documentação de progressão.
Mais recentemente, diversos trabalhos têm sido apresentados com relação a CXL transepitelial, sem a habitual remoção do epitélio corneano. Magli e colaboradores22 conduziram uma análise comparativa de pacientes entre 12 e 18 anos tratados com CXL tradicional e transepitelial. Os autores não encontraram diferença significativa nas mudanças de K máximo, K mínimo, índices de assimetria e medidas de elevação comparando os dois grupos ao final de um ano. Por outro lado, Buzzonetti e Petrocelli23 realizaram um estudo comparativo prospectivo em 13 olhos de 13 pacientes pediátricos (8 a 18 anos) e demonstraram que, apesar da melhora observada na acuidade visual, o CXL transepitelial não tinha o mesmo efeito na desaceleração do ceratocone que o tratamento padrão.
É fundamental que se ressalte que CXL, como todo e qualquer procedimento cirúrgico, apresenta riscos e benefícios. Complicações como infecção, úlcera corneana, ceratite lamelar difusa, opacidade corneana semelhante ao haze, infiltrados periféricos estéreis e reativação de herpes ocular já foram descritas.24 Portanto, uma conduta conservadora, expectante, em pacientes com boa acuidade visual (20/25 ou melhor), em indivíduos de qualquer idade pode ser de bom senso. Crianças que ainda não apresentem perda de qualidade visual devem ser devidamente orientadas a não coçar os olhos e a tratar atopias, o que pode, eventualmente, evitar a progressão da doença e até mesmo dispensar a indicação de qualquer tratamento cirúrgico. Caso a indicação seja inexorável, o objetivo, os riscos, benefícios e potenciais complicações devem ser devidamente discutidos e esclarecidos com os responsáveis, antes de determinar qualquer conduta.
Referências:
-
Krachmer JH, Feder RS, Belin MW.Keratoconus and related noninflammatory corneal thinning disorders. Surv Ophthalmol 1984;28(4):293-322.
-
Belin MW, Asota IM, Ambrosio R Jr,Khachikian SS. What’s in a name: keratoconus, pellucid marginal degeneration, and related thinning disorders. Am J Ophthalmol 2011;152(2):157-162 e151.
-
Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol 1998; 42(4): 297-319.
-
Davis LJ, Schechtman KB, Wilson BS, et al. Longitudinal changes in visual acuity in keratoconus. Invest Ophthalmol Vis Sci 2006; 47(2): 489-500.
-
Rathi VM, Taneja M, Dumpati S, Mandathara PS, Sangwan VS. Role of Scleral Contact Lenses in Management of Coexisting Keratoconus and Stevens-Johnson Syndrome. Cornea. 2017 Jul 26. doi: 10.1097/ICO.0000000000001310. [Epub ahead of print]
-
Maharana PK, Dubey A, Jhanji V, Sharma N, Das S, Vajpayee RB. Management of advanced corneal ectasias. Br J Ophthalmol. 2016 Jan;100(1):34-40.
-
Shahhoseini S, Hashemi H, Asgari S. Intracorneal ring segment depth in keratoconus patients: a long-term follow-up study. Int Ophthalmol. 2017 Jun 12. doi: 10.1007/s10792-017-0595-2. [Epub ahead of print]
-
Vega-Estrada A, Alio JL. The use of intracorneal ring segments in keratoconus. Eye Vis (Lond). 2016 Mar 15;3:8.
-
Raiskup F, Lenk J, Herber R, Gatzioufas Z, Spörl E.Therapeutic Options in Keratoconus. Klin Monbl Augenheilkd. 2017 Jul 6. doi: 10.1055/s-0043-111797. [Epub ahead of print]
-
Pedrotti E, Passilongo M, Fasolo A, Ficial S, Ferrari S, Marchini G. Refractive outcomes of penetrating keratoplasty and deep anterior lamellar keratoplasty in fellow eyes for keratoconus. Int Ophthalmol. 2017 Aug;37(4):911-919
-
Wollensak G, Spoerl E, Seiler T. Riboflavin/ultraviolet: An induced collagen crosslinking for the treatment of keratoconus. Am J Ophthalmol 2003; 135(5): 620-7.
-
O’Brart DPS. Corneal collagen crosslinking for corneal ectasias: a review. Eur J Ophthalmol. 2017 May 11;27(3):253-269.
-
Arora R, Gupta D, Goyal JL, Jain P. Results of corneal collagen cross-linking in pediatric patients. J Refract Surg 2012; 28(11): 759-62.
-
Caporossi A, Mazzotta C, Baiocchi S, Caporossi T, Denaro R, Balestrazzi A. Riboflavin-UVA-induced corneal collagen cross-linking in pediatric patients. Cornea 2012; 31(3): 227-31.
-
Leoni-Mesplie S, Mortemousque B, Touboul D, et al. Scalability and severity of keratoconus in children. Am J Ophthalmol 2012; 154: 56-62.
-
Li X, Yang H, Rabinowitz YS. Longitudinal study of keratoconus progression. Exp Eye Res 2007; 85(4): 502-7.
-
Ertan A, Muftuoglu O. Keratoconus clinical findings according to different age and gender groups. Cornea 2008; 27(10): 1109-13.
-
Vanathi M, Panda A, Vengayil S, Chaudhuri Z, Dada T. Pediatric keratoplasty. Surv Ophthalmol 2009; 54(2): 245-71.
-
Panos GD, Kozeis N, Balidis M, Moschos MM,Hafezi F. Collagen Cross- Linking for Paediatric Keratoconus. The Open Ophthalmology Journal, 2017, 11, (Suppl-1, M5) 211-216.
-
Vinciguerra P, Albé E, Frueh BE, Trazza S, Epstein D. Two-year corneal cross-linking results in patients younger than 18 years with documented progressive keratoconus. Am J Ophthalmol 2012; 154(3): 520-6.
-
Chatzis N, Hafezi F. Progression of keratoconus and efficacy of pediatric [corrected] corneal collagen cross-linking in children and adolescents. J Refract Surg 2012; 28(11): 753-8.
-
Magli A, Forte R, Tortori A, Capasso L, Marsico G, Piozzi E. Epithelium-off corneal collagen cross-linking versus transepithelial crosslinking for pediatric keratoconus. Cornea 2013; 32(5): 597-601.
-
Buzzonetti L, Petrocelli G. Transepithelial corneal cross-linking in pediatric patients: early results. J Refract Surg 2012; 28(11): 763-7.
-
Dhawan S, Rao K, Natrajan S. Complications of corneal collagen cross-linking. J Ophthalmol. 2011;2011:869015.